domingo, 22 de novembro de 2009

O enganoso fisgado Don Furioso de la Mooca





Composto por Miguel de Seiva-Antes Tu-verás

Dirigido ao Duque de Sembargador, marquês dos Trilhos, conde de Tobias e Barreto, visconde de Juventus, senhor das vilas Um-é-pouco, Dois-é-bom e Três-é-Demais.



Ano 2009



Prólogo

Desocupado leitor: sem juramentos me poderias crer que essa história fosse a mais bela de todas, ou pelo menos, que fosse de alguma forma bela. Mas assim não será, tanto pela inabilidade de quem te escreve, quanto pelos enganos, dissimulações e barbaridades cometidas por tão singular personagem, que ela pretende muito sucintamente contar.
Mas deixemos de lado os prólogos, que servem apenas para aumentar a impaciência do leitor e atrapalhar as medidas ecológicas, que tentam minimizar os estragos em conseqüência dos desmatamentos selvagens das florestas, controlando o numero de papéis impressos.
Essa história do Cavaleiro da Taturana Figura levou muitas pessoas a concordarem com os versos do poeta Ovídio:



Donec eris felix, multos numerabis amicos,
Tempora si fuerint nubila, solus eris.

E com isso, prezado leitor, que Deus te salve, e a mim não esqueça. Vale!


Versos laudatórios à história do enganoso fisgado Don Furioso de la Mooca

A Cambucínico


Sou Cambucinico, o cavalo,
Famoso bisneto do grande Babieca
E neto do magistral Rocinante.
Por fraqueza e força das circunstâncias
Acabei em poder dum tal Don Furioso,
Que me exigia submissão
Mesmo nas mais disparatadas loucuras.
Acompanhei suas andanças
Do Iapoque ao Chuí,
E testemunhei o poder mágico
E encantador de sua retórica.
Sedutor da juventude,
Sócrates tupiniquim,
Sofista galhardo!



A senhora trás-os-montana, Ivocinéia de Dobozo

Oh! Quem teria, devota Ivocinéia,
Por mais comodidade e mais repouso,
Coragem de trocar a santa Dobozo,
Por Paris, Lyon ou Nicéia?

Quem é senão, que em teus sonhos braveja,
Alma e corpo te preserva, o famoso
Taturana, solerte cavaleiro furioso
Em busca de mais uma peleja?

Oh! Ivocinéia, senhora de Dobozo,
Fostes tu feliz ao tempo que fostes triste
E gostastes do gosto dos desgostos.




PRIMEIRA PARTE


Je hais toute sorte de tyrannie,
et la parlière, et l’effectuelle.

Michel de Montaigne


Capítulo Primeiro

Que trata dos traços particulares do famoso e valente fisgado Don Furioso de la Mooca.

Em um lugar da Mooca de cujo nome eu não quero me lembrar, não há muito tempo, vivia um fisgado, de sobrancelha avantajada, estatura reduzida e barriga mais para caldo que feijão.
Os ratos de sua casa estavam ociosos, pois ele não fazia outra coisa a não ser ler livros e textos da Internet, que narravam histórias fantásticas de santos e valorosos guerreiros desde Godofredo de Bulhão até o Cônan e o Batman, de quem, no inverno, tomava emprestada a capa. Lia com tanta afeição, imaginação e gosto, que se esqueceu de cuidar das coisas que seu dever de estado lhe requeria. Colecionava citações e, muitas delas, ele adaptava a seu modo, como a que dizia: “A razão da sem-razão que para mim faz sentido, enfraquece de tal maneira minha razão, que com razão me queixo do mundo todo”. Com todas essas razões, perdia o furioso cavaleiro a razão, e esforçava-se em entender, descobrir e revelar o sentido de todas as frases e idéias implícitas e camufladas nos textos de todos os historiadores da filosofia, santos e Papas, que lhe caíam às mãos.
Envolvia-se tanto com as leituras, que se fez secar o cérebro e perdeu o juízo. Acreditava tanto em suas tormentas e disparates, que estava absolutamente seguro de que tudo que interpretava era a verdade mais certa do mundo.
Tudo isso, alimentou de tal maneira sua imaginação, que teve um dos mais estranhos pensamentos jamais vistos entre os maiores loucos da humanidade. Cria necessário, para sua honra e para serviço da igreja, fazer-se cavaleiro leigo andante e ir-se pelo mundo angariando discípulos para si, em nome da igreja, para por em prática o que tinha aprendido nas leituras sobre as cruzadas e as vidas de Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier e Dom Bosco. Desafiava todos os tipos de pessoas, desde ateus e hereges, até padres e Bispos. Ele julgava, que acabando com todos eles, poderia cobrar da vida, eterno nome e fama.
Tratou de tomar um cavalo e colocar-lhe um nome. E como imaginava aquele ser um manga-larga inigualável, resolveu dar-lhe o nome de Cambucínico, em honra do bairro onde passara boa parte da vida e toda sua infância. “Tu te chamarás, Cambucínico, um nome sonoro e muito significativo”, disse ao cavalo, batizando-o. “Agora só falta escolher-me um nome digno de minha fisgada pessoa”. Passaram-se oito dias. E como se achava uma pessoa eleita de Deus, um peixe fisgado pelo Grande Pescador, surgiu-lhe o nome, que a seu entender, lhe daria fama e imortalidade: “Don Furioso”, pronunciou.“Don Furioso de la Mooca”, repetiu solenemente. “Assim declaro minha linhagem e minha pátria, honrando-a ao tomá-la por sobrenome. Don Furioso, Don Furioso de la Mooca”.
Com cavalo batizado, e seu nome escolhido, pensava que lhe faltava apenas uma dama, porque um cavaleiro andante sem amores era como uma árvore sem folhas e sem frutos; um corpo sem alma. “Se encontrar em minhas andanças um inimigo gigante, como é próprio de cavaleiros andantes, depois de vencê-lo, oferecerei a ela meus triunfos”, decidiu. Tratava-se de uma mulher originária de Trás-os-Montes e que morava nas redondezas do lugar. Seu nome era Ivonette, a quem lhe pareceu dar bem o título de “Senhora de meus pensamentos”. E buscando um nome que não se diferenciasse muito do verdadeiro e que fosse digno de uma elevada senhora, resolveu chamá-la de Ivocinéia de Dobozo, porque seria a dama do Bozo. Um nome musical, original e significativo como todos os demais que ele havia posto nele e em suas coisas.


Capítulo Segundo

Que trata da primeira saída e de como se armou cavaleiro o enganoso Don Furioso.

Confessando-se cavaleiro, pensava que o mundo conclamava sua presença. Ele já calculava quantos inimigos ele iria encontrar aquele dia, as insensatezes que corrigiria, os abusos que reverteria e as injustiças que ele mesmo deveria extirpar. Cedinho pela manhã, armou-se cavaleiro, subiu em seu Cambucínico, e saiu com grandioso alvoroço para satisfazer seu ego e seus desejos de aventura. Logo, porém, deu-se conta que ainda não era cavaleiro, pois pela lei de cavalaria, ele deveria ser armado antes de partir em andanças. Resolveu então entrar na primeira igreja que encontrasse. Quando se deparou com uma paróquia salesiana, colocou-se diante do altar e foi implorar a Deus, que lhe desse muitas almas. Que lhe tirasse todo o resto, mas que lhe desse almas. Almas que fossem discípulas suas e lhe prestasse eterna gratidão e submissão, pois que não era possível ser bom cristão, sem ser seu discípulo.
Acreditando-se abençoado, partiu com Cambucínico em busca de aventuras. Caminhava por um dos tantos caminhos de la Mooca, contentíssimo por ter sido armado cavaleiro, pensando em sua amada, até que avistou um grande número de pessoas reunidas. Era uma rapaziada, cheia de sonhos, com ingenuidade e alegria, que conversava descontraidamente. Aproximando-se, Don Furioso, tentando imitar as narrativas da vida dos santos que havia lido, imaginou tratar-se das almas de sua primeira conquista. E levantando a voz, em tom arrogante disse:
“Que o mundo pereça, se todo mundo não admitir, que não há dama, no mundo inteiro, mais virtuosa que a Imperatriz da Mooca! A sem par, Ivocinéia de Dobozo!”
Os rapazes, surpresos, detiveram-se diante de tal estranha intervenção. Ao ver a figura esquisita que lhes falava, desconfiaram de sua loucura. Mas resolveram ouvir, para ver até onde iria aquela galhardia. Um deles, brincalhão e bonachão, resolveu responder:
“Senhor cavaleiro, nós não conhecemos essa dama, a que se refere. Mostre-a, e então daremos nossa opinião”.
“Opinião? Sua opinião não vale nada! E que valor tem em afirmar uma coisa incontestável ao vê-la? A grandeza está em acreditar no que eu digo. Não precisas ver, porque se tens que ver o que eu digo, não há sentido em crer. Tens que crer, confessar, afirmar, jurar e defender! Isso é virtude”, respondeu Don Furioso aos berros.
“Suplico fisgado cavaleiro, que se acalme e não nos entenda mal. Mostre-nos pelo menos uma foto, para então que vejamos sua grandeza e virtude”.
“Não venha com essa, canalha infame!”, retrucou Don Furioso violentamente como se fosse um rolo compressor, “vocês pagarão por essa incrível blasfêmia! Vocês negam uma realidade gritante, como a inegável virtude de tão beata figura, Ivocinéia de Dobozo. Vocês estão pecando contra o Espírito Santo, negando a evidência”.
Partiu para cima do rapaz, não o deixando falar, nem pronunciar nem mesmo uma palavra. Descarregou toda sua cólera sobre o miserável, até que escorregou e bateu a cara no chão. Ao levantar o rosto, a rapaziada reparou que um chiclete mastigado, que estava na calçada, havia colado bem na ponta do nariz de Don Furioso. Todos começaram a rir.
Ele, no chão, gritava enquanto os rapazes dispersavam-se:
“Me pagarão, seus malandros. Eu sou Don Furioso de la Mooca. Vocês não sabem com quem estão brigando! Covardes! São todos covardes!”.
Quando todos foram embora, levantou-se com dificuldade e disse para si mesmo: “Não me dou por vencido. Eu sei quem sou”.


Capítulo Terceiro

Da segunda saída de nosso cavaleiro Don Furioso de la Mooca e de sua aventura com os milagres do vento.

Ao voltar para casa, buscou um de seus livros mais queridos. Mas não o encontrou. Vasculhou toda a casa. Nada. Primeiro suspeitou que fosse alguma trama dos infernos, fruto de algum conchavo secreto do Padre Lambari, ou alguma urucubaca do Padre Reinaldo. Depois julgou que havia sido um encantamento de seu eterno desafeto, Fernandão. “Esse monstro Fernandão me persegue. É um grande inimigo meu! Ele me tem ojeriza porque sabe que sou melhor que ele, e que o vencerei! Por isso tenta me atrapalhar em tudo que pode. Mas não conseguirá deter-me, porque ele não tem o poder de mudar o que o céu determinou!”
E resolveu então escolher um escudeiro, para que não caminhasse sozinho. Não precisava ter muito sal na moleira. Prometer-lhe-ia herdar todas as almas que ele viesse a conseguir e lhe garantiria perdão divino, persuadindo-o de que todas as burlas que fossem necessárias para despistar o fisco eram perfeitamente legítimas. Albancho Melança era o seu nome.
Puseram-se então a caminho, em busca de aventuras, com seu escudeiro montado num burrico. Depois de uma longa jornada, Albancho Melança mantinha-se sobre seu jumento como um patriarca, imaginando-se herdeiro de almas, como seu amo havia-lhe prometido.
Enquanto cavalgavam, conversavam sobre o futuro das almas que conquistariam. O sol escaldante parecia turbar-lhes os sentidos. Até que, de repente, Don Furioso diz para seu escudeiro:
“Albancho! A providência nos guia de modo muito melhor do que imaginamos. Veja a brisa que está nos refrescando e o ouça o vento que nos chama!”
“Que vento? Não ouço nada”.
“Olha o vento aí! Falando bem claramente VOUS, VOUS, VOUS!”
“Caro amo, não há nada aqui, a não ser que a coruja esteja fazendo hora-extra!”
“Bem se vê que não entendes nada das coisas de Deus! Não é coruja nenhuma! É o vento falando francês! E se duvidas, vá embora, não fiques nem um instante perto de mim!”
“Eu não sei falar francês!”
“Então te cala e escuta o vento. VOUS, VOUS, VOUS!”
“Que ele diz?”
“Olhe! O homem vestido de branco está me chamando....e está dizendo... “VOUS....VOUS... Don Furioso, tu és o escolhido de Deus. Deverás publicar o terceiro segredo de Fátima. VOUS...VOUS”.
“Não há vento!”, insistia Albancho.
Admirado com a visão, e sem dar ouvidos ao escudeiro, foi atrás do homem de branco, implorando que voltasse. Ele, porém, distanciava-se, para desespero de Don Furioso que gritava: “Milagre! Não fujas! Não sejas covarde!”. E passou a correr com todas suas forças. Fatigou-se. Mas logo cessou a alucinação do vento, que o cavaleiro da Taturana Figura teve, e a miragem foi-se definitivamente embora. Cambucínico tropeçou de cansaço e caiu, derrubando junto consigo Don Furioso.
“Valha-me Deus, meu amo! Eu não disse que não havia vento!”
“Cala-te, meu filho Albancho. Essa é boa guerra. E as coisas de guerra estão sujeitas a mudanças imprevistas. Estou certo que o tropeço de Cambucínico foi causado por algum encantamento do Fernandão”.
E Don Furioso ficou com todos os músculos moídos e uma insuportável dor nas costas. Mas não se deixava abater, pois um cavaleiro andante jamais desiste de suas aventuras.
Albancho reclamou de fome e, então, eles decidiram procurar algum lugar para comer.


Capítulo Quarto

Do que se passou com o cavaleiro Don Furioso e seu escudeiro Albancho numa cantina da Mooca.


Avistaram uma cantina verdadeiramente italiana. “Comer não é importante para mim”, disse Don Furioso, “pois é honra para os cavaleiros andantes não comer nada por um mês, ou apenas dois ou três Sonhos de Valsa nos finais de semana. Mas se queres comer alguma coisa, entremos nessa taverna”.
“Na verdade não é uma taverna, mas uma cantina”.
“Eu sei muito bem o que estou vendo! Não preciso de ninguém para me esclarecer!”
Ao entrarem na cantina, que era taverna aos olhos de Don Furioso, ele percebeu que um casal numa mesa próximo à porta preparava-se para levar à boca a primeira garfada da comida do prato recém chegado. Mas antes que eles tivessem tempo de colocar a comida na boca, Don Furioso partiu para cima e deu com sua lança na mesa, jogando os pratos no chão. A mulher gritou de pavor e o marido, estupefato, não sabia como reagir.
“Não precisam agradecer!”, falou orgulhosamente Don Furioso, “Salvei-lhes de comerem um prato de minhocas!”
Ao ouvir isso, Albancho tentou esclarecer: “Mas amo! Não eram minhocas! Era Spaghetti a Bolonhesa!”
“Bem sei que se engana Albancho! Não tens experiências nessas coisas de cavalaria! Eram minhocas, que quando ataquei transformaram-se em Spaghetti! Foi seguramente mais um encantamento do Fernandão!”
O dono da cantina, por respeito a seus clientes, exigiu que Don Furioso pagasse pelos pratos e pelos estragos que fizera ao casal. “Se não ressarcir este casal, chamarei a policia”, ameaçou o cantineiro.
Ouvindo isso, Don Furioso ficou furibundo: “Cala a boca! Para mim não há meias palavras! Onde vistes ou lestes que algum cavaleiro andante tenha sido convocado à delegacia ou ao tribunal, por mais homicídios de almas que tenha cometido? Por isso, cala-te, se não queres deixar tua vida por pagamento de teu atrevimento”.
Ao escutar tal discurso, o cantineiro acionou os seguranças, que encheram Don Furioso de sopapos e cacetadas. Ele levou vários dias para se recuperar dos frutos de seus desaforos.


Capítulo Quinto

De como Don Furioso revelou a seu escudeiro a verdade sobre a história da humanidade e de sua demonstração e listagem dos maiores gnósticos de todos os tempos

Depois de se recompor da surra que levara na cantina, que a seus olhos era taverna, Don Furioso tomou seu isopor e partiu com seu escudeiro para mais aventuras. Jamais, em suas andanças, abandonou a presunção de que apenas ele era capaz de compreender a realidade, e que apenas os loucos, ou os cegos, não enxergavam o mundo como ele. E se um dia ele julgasse necessário consultar um médico, certamente procuraria o Dr. Simão de Bacamarte.
Depois de um tempo de viagem, o escudeiro resolveu aprender mais coisas com seu mestre.
“O céu é tão bonito! Não é de se surpreender que o azul seja a cor mais bonita de todas”.
“Cala-te, meu filho! Não vês que grande besteira tu acabas de dizer? Pois não sabes que o vermelho é a mais bela de todas as cores?”
“Mas eu gosto do azul!”
“Fecha essa matraca! Se gostas do azul é porque tens mau gosto! O vermelho é a mais bela de todas as cores! A cor da fúria, do sangue, da força! A cor de um verdadeiro cavaleiro andante. Se queres continuar a ser meu escudeiro, admita que o vermelho é mais belo, ou então, que tu tens mau gosto!”
“De fato, meu caro amo, o vermelho é a mais belas de todas as cores!”
“Isso filho! Isso!”
E ficaram em silêncio por algum tempo.
Continuando a cavalgar e para romper com a monotonia e impressionar seu escudeiro, dando-lhe a impressão de possuir um conhecimento enciclopédico, iniciou seus ensinamentos.
“Meu caro filho Albancho”, começou, “diga-me por tua vida: Leste alguma vez sobre algum cavaleiro mais valoroso, com mais brio, perseverança e destreza que Don Furioso de la Mooca? “
“Para dizer a verdade, não gosto muito de ler. Não li muita coisa. Mas ouso apostar que jamais vi alguém mais atrevido que o senhor, estupendo mestre!”
“Então chegou o momento de te fazer uma revelação importantíssima. Estejas certo que milhares de homens no mundo, gostariam de ouvir o que vou dizer-te agora!”.
“Meu amo, que grande honra me concedes ao expor-me teus segredos!”
“Peço-te sigilo, pois não convém que todos saibam sempre da verdade!”
“Não dê pérolas aos porcos! Diz o ditado”.
“Isso filho! Isso filho! Perfeitamente!”
“Não direi nada a ninguém”
“Perfeitamente. A história do mundo é a história da luta contra a gnose. No princípio era a gnose! É assim até hoje!”
“Impressionante”
“Eu acreditava que a gnose era um fenômeno bem definido, pertencente à história da antiguidade tardia. Pouco tempo depois, descobri que eu, pela única vez em minha vida, havia me enganado. Não apenas a gnose é gnóstica. Mas os hereges, a psicanálise, o liberalismo, o romantismo, o comunismo, o nazismo, o modernismo, o existencialismo, o carismatismo, o olavismo, o embrulhismo, o hipocondrismo, o campismo, o campinismo, o josécampismo, o santoamarismo, o miguelpaulismo, o courtalinismo, o vilamarianismo e, em breve, o limeirismo e seus adjuntos são também todos gnósticos. Eu acreditava que a gnose era um capítulo da história do pensamento ocidental; mas depois de ler tantos livros e artigos na internet sobre o assunto, eu tive finalmente uma iluminação. Na verdade é contrário. É o pensamento ocidental que é um capítulo da história da gnose!”
“Genial! Fantástico!”
“Sim!”
“Quem seria, Don Furioso, por exemplo, gnóstico?”
“São tantos os nomes, que fica difícil falar assim!”, exclamou o Cavaleiro da Taturana Figura.
“O Fernandão?”
“Persegue-me e diz que vejo gnose em tudo. É gnóstico!”
“Padre Lambari?”
“Descobriu quem sou e não me quer mais. Gnóstico!”
“Passaoito?”
“Metido na hierarquia. Acredita no padre Lambari. Gnóstico!”
“Padre Fadas?”
“Está gagá e não aceita submeter-se a mim. Gnóstico!”
“Padre Reinaldo?”
“Não quer mais me seguir. Gnóstico!”
“Dom Disse-ele de Marcha-ré?”
“Não sabe interpretar o Código de Direito Canônico. Gnóstico!”
“Hellman’s Hershey’s?”, continuou o escudeiro.
“Onde se mete, põe maionese na salada. É maçon e gosta de passear. Gnóstico!”
“Paty Josefinavitch?”
“Louca. Tem mania de perseguição. Gosta do mar e não toma meu sorvete. Gnóstica!”
“Mas e o filho?”
“Mergulha na piscina, ouve Alanis Morissetti e, ainda por cima, usa costeleta. É gnóstico!”
“E as filhas?”
“Põem roupa de homem! Gnósticas!”
“Ronald Mc’Magro?”.
“Místico! Fez o Caminho de Compostela. Gnóstico!”
“Saulo Barbaosa?”
“Possesso. Aquela barba não me engana: é gnóstico!”
“Reinaldo Omo?”
“Gosta de monge e sabe latim. Faz muita espuma. É gnóstico!”
“Filipo Lebre?”
“Lunático. Megalomaníaco. Auto elegeu-se Papa. Gnóstico!”
“E sua esposa, a senhora Psiti Lebre?”
“Professora de piano. Gnóstica! E sabe tocar Beethoven. Duplamente gnóstica! Aliás, ela é triplamente gnóstica: uma vez pelo piano, outra pelo Beethoven e mais outra por ela mesma!”
“Fabio do Quintal?”
“Trocou Dobozo por queijo Camembert. Gnóstico!”
“Fagner Zucchero?”
“Queria ser um peixe! Dialético! Toma mal por bem e o bem por mal. Pode ter arrumado amantes na praia. Gnóstico!”
“Sr. Alface Vítima?”
“Desequilibrado e gagá. Obcecado por e-mails. Gnóstico!”
“Estáxaxim?”
“Uma samambaia! Encrenqueiro e comilão. Gnóstico!”
“Fazo Turbante?”
“Louco. Criador de sites e blogs. Gnóstico!”
“Cid Lausane?”
“O nariz chegou primeiro. Gnóstico!”
“Marcus Riram Quito?”
“Vai mais para lá que para cá e, depois, mais para cá que para lá. Gnóstico!”
“Breno Rondeli?”
“Chinês! Yin Yang! Adorador de Mamom. Gnóstico!”
“Gargamel Lely?”
“Amigo do chinês. Gnóstico!”
“Mas e sua esposa, a sra. Lely?”
“Influenciada pelo xaxim. Gnóstica!”
“Sérvio Meses?”
“Ele é 12. Um liberal. Gnóstico!”
“Edsardo Aumenta?”
“Vai à praia. Permite que a família use sandálias sem meia-calça. Gnóstico!”
“Edsardo Seutiago?”
“Cheio de histórias. Gnóstico!”
“Rosnando Incerto?”
“Não sei que vai fazer com meus livros. Vai perder mais cabelo com eles! Esse aí gosta de piada de mineiro. Gnóstico!”
“Desisto, desisto meu mestre!”, exclamou Albancho Melança. “Está provado que a gnose é o grande mal da história da humanidade!”
“Eu diria que todos esses, além de maus, são uns ingratos e não há maior pecado que a ingratidão! Para eles, o meu desprezo, pois, fazer bem a vilãos é como despejar água no mar!”
“Como o senhor fala bem!”
“E tem mais nomes para incluir! Como todas as mães que dão chupetas para as crianças e as vovós que oferecem pirulitos para os netinhos!”
“Basta, meu amo, suas teses são incontestáveis!”
“Penso ainda em te ensinar outros segredos com o tempo. A ordem de cavalaria obriga-me a nunca dizer mentiras, exceto em caso de necessidade”.
“Quanta honra! E assim vencer todos os nossos inimigos!”
“Dizes bem, meu filho. Não há maior alegria no mundo e nada é mais saboroso que vencer uma batalha e triunfar sobre o inimigo, mesmo que imaginário”.
Albancho agradeceu-lhe devotamente pelas maravilhosas revelações. E permaneceram cavalgando lentamente, até que Don Furioso avistou um castelo, que na verdade, não passava de um sobrado qualquer.


Capítulo Seis

De como o Cavaleiro da Taturana Figura imaginou ter seu seminário num castelo

“Um castelo! É hoje que se verá o bem que a providência reservou-me. Este é o dia em que se há de mostrar, como nenhum outro jamais visto, o grande valor que tenho e a prova da missão das obras que devo realizar para permanecerem escritas, pelos séculos vindouros, no livro dos grandes feitos da história! Um castelo! Rogo por tua vida! Um castelo!”
“Mas é um sobrado!”, tentou alertar o escudeiro.
“Não sejas tonto! Eu sou seu senhor Feudal! Você é meu servo! Por ti dou minha vida, como por mim, tu das a tua alma e tua consciência!“
“Mas...”
“Eu nasci nesse século de ruínas, por determinação dos céus, para resgatar a idade dourada da igreja. A mim estão guardados os perigos, as conquistas e os grandes feitos. Eu sou, repito, aquele que vai ressuscitar a fé. Vamos entrar nesse castelo!”
Não tendo como negar mais esse pedido exaltado de seu amo, o escudeiro resolveu aproximar-se do sobrado, que para Don Furioso era um castelo.
“Meu filho, já posso ver. Dom Bosco começou num casebre, mas nós vamos ter esse castelo e lá farei meu seminário. Formarei os padres e organizarei todas as suas atividades. Para o bem deles, é bom que eu mande até nas vírgulas. Por exemplo, já posso iniciar a grade horária e os programas das matérias que administrarei. Eles precisam de uma formação ampla e completa, que apenas comigo poderiam ter. Vou selecionar os candidatos. Quem joga vôlei não entra!”
“Permita-me, meu amo, apenas perguntar como pretende arrumar o dinheiro para comprar um castelo como esse?”.
“Ah...isso é muito fácil. Vou pedir para o Lobo Azedo ou para o Vobiscum’s Pizza. O Azedo vai me dar uns 500 mil dólares muito facilmente. É óbvio!”
Melança tremia toda vez que ouvia Don Furioso dizer “óbvio”. E mudando de humor, como a biruta de um aeroporto, Don Furioso irritou-se.
“Estás duvidando?”
“De modo algum, de modo algum. Tu és Furioso e sobre Furioso edifiquei minha confiança”.
“Por um momento pensei que duvidaste. Aprenda mais uma coisa: o verbo errar é o único que não se conjuga na primeira pessoa! Isso eu te digo, porque quero que saibas o quanto sou discreto.”
E finalmente chegaram ao sobrado, que o Cavaleiro da Taturana Figura imaginava ser um castelo.


Capítulo Sete

De como Paty Josefinavitch, senhora do castelo, não aceitou o sorvete de Don Furioso.

Aproximando-se da porta, Don Furioso bateu como quem bate num calabouço. Aguardou que abrissem a porta. Logo saiu a senhora do castelo, que se chamava Paty, acompanhada de suas duas filhas. Sem que ela tivesse tempo de dizer alguma coisa, Don Furioso disparou:
“A cavalaria andante, estabelecida por mim, foi feita para defender os jovens e as donzelas e amparar as viúvas. Acreditai formosa senhora, que é uma honra para vossa senhoria receber-me em vosso castelo. E escreverei em minhas memórias, sobre o grande serviço que me prestastes, abrindo-me as portas de vossa morada”.
A senhora Josefinavitch e suas filhas estavam confusas com a visita do tal cavaleiro, que falava tão afetadamente, como se pronunciasse palavras em grego.
“Trago-vos, cara senhora, um pote de sorvete. Aceitai”.
E vendo que era apenas o Cavaleiro da Taturana Figura, as filhas dispersaram-se e Albancho tratou de cuidar de Cambucínico. Aproveitando-se que todos estavam distraídos, Don Furioso, dirigindo-se a dona do sobrado, tentou brincar com sua mão gelada, porque aquilo seria tão maravilhosamente inacreditável, que ninguém acreditaria.
“Quero pagar, formosa senhora, por todo o bem que me faz”, iniciou Don Furioso, “Já que a boa fortuna colocou-nos frente a frente”.
Mas Paty Josefinavitch indignou-se de tal modo com o atrevimento do Cavaleiro da Taturana Figura, que Don Furioso teve um leve ataque de remorso ao lembrar-se de Ivocinéia.
“Ponha-se fora daqui! Já não é a primeira vez!”, bradou a senhora em cólera.
“Não! Não!”, perturbou-se o Cavaleiro da Taturana Figura. “Não é isso! Não é isso que quis fazer!”
“Ponha-se fora daqui”. E só não foi posto para fora a ponta pés, porque a senhora do sobrado usava saltos altos e jamais havia praticado kung-fu.
Desolado, o Cavaleiro da Taturana Figura partiu com seu escudeiro. “Aquele castelo”, disse para seu discípulo, “era sem dúvida encantado, pois aquelas pessoas não eram outra coisa, senão fantasmas gozadores da vida. Disso dou-te minha palavra, em nome de meu universalmente honrado nome”.
Bem se diz que é preciso de tempo para se conhecer as pessoas, pois não há homem que não possa um dia ser desmascarado e decepcionar àqueles que um dia foram por ele mágica e retoricamente dominados. Não é possível que o mal seja tão durável, pois durando longamente o mal, é sinal de que o bem está próximo. Não foram poucos os que se convenceram que Don Furioso havia passado dos limites e que era hora de se aposentar da cavalaria andante. Eripe me, Domine, ab homine malo.



Fim da primeira parte









Segunda Parte do enganoso fisgado Don Furioso de la Mooca

por Miguel de Seiva-Antes Tu-verás, autor da primeira parte

Dirigida a Don Salame de Casca, conde do Sacomã, do Alto e do Baixo do Ipiranga, marquês de Gentil de Moura e membro da câmera de sua Majestade, comendador dos Sorocabanos e do Grito, vice-rei, governador e capitão geral do reino de Independência e presidente do Supremo Conselho de Malindrania.

Ano 2009

Aprovação

Por comissão e mandado dos senhores do Conselho foi checado o conteúdo desta narrativa. Não se constatou nada contra a boa fé e os bons costumes, pelo contrário, viu-se muito entretenimento lícito, mesclado de muita filosofia moral. Pode dar-se licença de publicação.
Doutor Si Vago.

Prólogo



Tout flatteur vit aux dépens de celui qui l'écoute.

Jean de la Fontaine

Valha-me Deus e com quanta gana, ilustre ou plebeu leitor, deves estar esperando este prólogo, acreditando nele encontrar justificavas ou insinuações de qualquer tipo, espécie ou matéria. Em verdade, gentil e hipócrita leitor, não terás essa satisfação, posto que não é de nossa feita despertar a cólera em humildes corações. Desejavas ofensas, mas isso não me passa pelo pensamento: que cada um examine-se a si mesmo. Não posso, contudo, deixar de ilustrar as feridas causadas em inúmeras almas e os dilaceramentos em tantas centenas de consciências, que tomaram o falso por verdadeiro e verdadeiro por falso, em decorrência de tão dissimulado impostor. Se meu conto não agrada aos olhos turvos de quem o lê, ele é estimado, ao menos, pelos que foram feridos pela lança venenosa dos aproveitadores que se apresentaram em nossas vidas, dificultando ainda mais a labuta de nossa cotidiana existência. Alguns jamais se recuperaram, pois pagaram caro demais pelas armadilhas da ilusão.
Curioso leitor, eu parecia ser soldado morto ou foragido do combate. Eis que reapareci, mais vivo que nunca, para vos narrar a primeira parte e, agora, com mais receptividade, a segunda e conclusiva parte, dos tantos sucessos, tão ridículos como verdadeiros, do Cavaleiro da Taturana Figura. Ofereço-te nesta segunda parte, paciente leitor, um Don Furioso estendido, finalmente morto e sepultado. E ninguém se atreva a levantar novos testemunhos, pois já bastam os passados e basta também que os homens honrados dêem notícias destas loucuras, sem querer repetir as mesmas sandices: que a abundância das coisas, ainda que boas e instrutivas, fazem-nos que não as estime; e a carência, ainda que má, estimamos.




Lord, Lord, how subject we old man are to this vice of lying!

Shakespeare. Henry IV, part II.

Io stesso, si, io, io, devo talor da un lato pore il timor di Dio
E, per necessità, sviar l’honore, usare stratagemmi
Ed equivoci, destreggiar, bordeggiare.

Verdi. Falstaff



Capítulo Primeiro
De como Don Furioso não aceitou a aposentadoria e saiu em busca de novas aventuras.

Era consenso entre os homens despertos que o mais grave em Don Furioso não era ter enganado tantos homens e mulheres, de mentir e maldizê-los, mas o de nunca ter admitido as barbaridades de suas atitudes e não ter o mínimo de remorso em todo prejuízo que causou a todos eles, pois o bem que por ventura pode ter feito a alguns foi infinitamente menor que todo o mal que espalhou para todo o resto. Chegou-se mesmo a sugerir que se Don Furioso fosse tão magistral quanto Falstaff não estaria errado dirigir-lhe o verso: That villainous abominable misleader of youth!
Contudo, depois de um mês, Don Furioso levantou uma madrugada, desperto de um sonho em que discutia com o pato Donald, e pôs-se de pé ao lado da cama, bateu a perna direita na esquerda e bradou: “Eu sou cavaleiro andante! Fui, sou e serei cavaleiro até a morte! Baixe ou suba a bolsa de valores, cheio ou vazio o bolso de meu escudeiro!”, e justificando seu retorno, continuava “Essa nossa época louca e depravada não é merecedora que tão valente e virtuoso cavaleiro como Don Furioso aposente-se da cavalaria andante. Vou-me em busca de mais jovens, pois sendo tão nobre minha empreitada, preciso de discípulos para guiar, comandar e ser servido. Sem servos não sou senhor”.
E preparava-se, então, Don Furioso para reencontrar o mundo. E se alguém colocasse em dúvida a veracidade da cavalaria andante, ou defendesse, que aquilo não passava de ficção, fábula, invenção e sonho contado por homens despertos, ele logo diria que “Isso é um grande erro em que muitos caíram, pois a cavalaria andante, a exemplo da história de Golias, é a maior de todas as verdades e que nenhum outro cavaleiro teria coragem e honra de exercê-la em tão incrédulo século”.
Convocou seu escudeiro do cabelo ruim Melança, que logo pôs sua cabeça chata à disposição de seu amo, para aprender mais um extraordinário ensinamento.
Quando caput dolet!”, iniciou Don Furioso.
“Meu mestre, não entendo essa língua. A minha própria já me atrapalha”.
“Quero dizer, filho, que quando dói a cabeça, dói todos os membros. E como sou teu amo e senhor feudal, sou tua cabeça, e tu és minha parte, pois és meu discípulo. Por isso, o mal que me toca, tocará também a ti, e há de doer. Quem toca a mim, a ti toca igualmente. Mas diga, que dizem de mim por aí? Que dizem de minha valentia, de minhas façanhas e de minha cortesia? Diga tudo, sem aumentar nem diminuir nada, pois a cavalaria andante exige total entrega às minhas ordens”.
“Farei isso de muito boa vontade, meu mestre, com a condição de que não se altere”.
“Perfeitamente, filho. Diga tudo sem rodeios”.
“Alguns lhe chamam de louco e a mim de mentecapto. Outros dizem que o senhor outorga a si mesmo honras e deveres que não lhes dizem respeito nem em dignidade nem em direito. Têm os que pensam que é louco, mas gracioso; valente, mas maldoso; cortês, mas impertinente. Há ainda os que lhe julgam mentiroso, covarde e mal-educado. Por último, ouvi que existem os que lhe consideram herege. Dizem ainda outras coisas, mas creio apenas isso já lhe deixará furioso”.
“Falaste como um catedrático! Saiba filho, que a virtude é sempre perseguida. Nenhum grande cavaleiro andante passou ileso por esse vale de lágrimas. Julio César, valente e prudente, foi chamado de ambicioso. Alexandre, o grande, foi acusado de ter falhas. Hércules, trabalhador incansável, foi caluniado como mole e lascivo. E São Jerônimo? E tantos outros santos, cujas vidas li pensando em mim mesmo? Se foi assim com eles, por que não seria assim também comigo? Sim, justamente eu, que fui um dos dois impedidos da história da humanidade a entrar em Belém. Entendeste?”
“Sim! E já que recebeu bem as notícias que eu tinha para dar, sou obrigado a revelar que o pior não é isso. Há algo além”.
“Pois então desembucha”, disse Don Furioso alterado, disparando a palpitação e a pressão arterial.
“Foi publicada uma história, que narra justamente nossas aventuras, com o nome de O enganoso fisgado Don Furioso de la Mooca. Falam também de mim e de Ivocinéia de Dobozo. E têm coisas que apenas nós dois vivemos e presenciamos; e assim vivo perguntando-me como o narrador sabe de tudo aquilo que realmente experimentamos?”
“Asseguro-te filho, que é um mágico encantador, esse aí que descobriu nossos podres e conta nossa história”.
“Um tal de Miguel Seiva-antes Tu-terás”.
“Vale! Te enganas!”, exclamou nervoso, “Deve ser Tu-verás! Pois pelo nome pode-se facilmente conhecer. Ver é mais que ter”.
“Que perspicaz! Que inteligência! O senhor é que é o verdadeiro fenômeno!”
“É óbvio! A imprensa é que só tem olhos para o dentuço e seus milhões!”
“A história espalhou-se por toda rede, alcançando inclusive terras da cordata pátria de Portugal”.
“Valha-me Deus!”, exclamou Don Furioso interessado.
“E pelo que soube, o senhor é a personagem principal. Mostrado como virtuoso e eminente, seguro ao superar os perigos, paciente nas adversidades e pacato nos sofrimentos e nas desgraças”.
“De quantas belezas é capaz a arte!”
“Mas há algumas falhas.”
“Não passa nada, escudeiro! Enéas também não foi tão piedoso como pinta Virgilio, nem Ulisses prudente como o descreve Homero! O historiador conta como as coisas deveriam ser, não como foram. Para se compor histórias, com tão brilhante personagem como Don Furioso, é preciso grande juízo e maduro entendimento ”.
Sem mais delongas e considerações, trataram de se apressar e partir em andanças, pois a história não poderia ser encerrada na primeira parte. Don Furioso teria sido mais sábio, se tivesse deixado a vida de cavaleiro andante. Não se pode, porém, cobrar sabedoria de quem age por impulsos de vaidade.


Capítulo Segundo

De como Don Furioso ensinou seu escudeiro, também através da música, a excluir e difamar um fulano que começa a incomodar e ameaçar seu domínio sobre os demais.

Cavalgando calmamente pela Mooca, Don Furioso resolveu ensinar outras verdades para seu escudeiro. “Entenda, meu filho, essa grande verdade”, começou “Laranja podre, a gente tira do saco”.
“Como assim?”
“Como assim faz mal para o estômago!”, disse Don Furioso e gargalhou ele mesmo de sua piada. Ria de modo tão estridente que os que estavam próximo sentiam-se obrigados a rir também, ainda que não tivesse graça alguma, ou que tivesse ouvido a mesma frase centenas de vezes.
“Hahahaha”, colaborou o escudeiro.
“Preste atenção filho!”, ficou sério, obrigando o escudeiro a se controlar, “nada se faz contra as opiniões se não se ataca as pessoas. Quando alguém começa a dar sinais de contestação de minhas idéias ou por em dúvida minha autoridade sobre elas e os demais, é hora de agir. Tem que se extirpar esse pus, para que meu reino não desabe. Não importa se legítimo ou não, um bem maior justifica qualquer ação imoral. Melhor preservar Don Furioso e seu império, que se deixar ser desmascarado. Quando o sujeito dá sinais de rebeldia, a primeira coisa a fazer é espalhar discretamente, em pequenos grupos, e às vezes mesmo em duplas, algum defeito dele. Isso é fácil, pois ninguém é completamente intocável, exceto o Cavaleiro da Taturana Figura. Isso fará com que as pessoas desconfiem do alvo, e o efeito de tudo que fizer e disser será menos prejudicial para meus domínios. Se o sujeito recua, então é preciso humilhá-lo para que aprenda bem a lição. Isso é que chamo a “picada milagrosa”. Fazemos o oponente confessar, quase de joelhos, que ele não sabe nada e que diante de mim, não tem chance alguma. Depois tem que se passar o algodãozinho, para estancar a injeção dolorosa. Para isso, começamos a chorar e abraçamos o humilhado, que passará a sentir-se amado, perdoado e reintegrado. Ele ficará tão grato, que sairá um discípulo melhor que antes. Mesmo que não se goste dele, é preciso abraçar e chorar”.
“Quanta sabedoria mestre!”
“Presta atenção! Presta atenção filho! Eu não terminei!”
“Pois não“
“Presta atenção! Não me interrompa!”
“Certo!”
“Meu Deus do céu, não me interrompa! Deixe-me concluir”.
Então o escudeiro calou-se apenas concordando com a cabeça.
“Porém, se o sujeito não aceita, então é hora de aniquilá-lo do nosso convívio e impedi-lo de ter contato com os outros; e para isso é preciso falar mal dele e expor-lhe os defeitos e pecados, se os conhecemos. Não importa os meios nem a veracidade das coisas, o fundamental é que o sujeito caia no ostracismo. Temos a licença de aumentar ou desvirtuar uma meia verdade. Em alguns casos, chamamos a pessoa e logo já disparamos berros contra ela fazendo acusações pessoais e não a deixamos, de modo algum, falar. Isso já achata o rebelde, e ele, de medo, não volta nunca mais. Em outros casos, é melhor nem convocar o revoltado, a melhor tática é ignorá-lo e jogar todos contra ele. Primeiros os amigos mais próximos e os compadres e, em seguida, todo o resto. A fama criada espalha-se rapidamente e, depois, não é preciso fazer mais nada, a besta está execrada para sempre e não infestará minhas outras ovelhas. Para completar, maldizemos o velhaco e atormentamos o sabugo rogando-lhe pragas e profetizando que será castigado por Deus e terminará no inferno. Isso é uma grande coisa, pois como previsões futuras não podem ser desditas no presente, terei sempre força nas profecias, ainda que aconteça o contrário. Se eu falasse inglês e fosse Shakespeare – um autor fraco, que não chega aos pés de Corneille –, eu continuaria aborrecendo o sujeito, ameaçando-o como Ricardo II: Live in thy shame, but die not shame with thee! These words hereafter thy tormentors be! Filho. Aí está o grande segredo da cavalaria andante. Digo tudo isso, filho, porque eu caminhei na rua do Bom Pastor, e dou a vida por minhas ovelhas. Eu as conheço e elas acreditam que me conhecem “.
“Espetacular! Nesse caso, meu amo, a calúnia é legitima, pois se busca um bem maior!”
“Isso filho, isso! Falas realmente como um catedrático! Eu vou cantar-lhe uma canção para compreenderes como se faz”, resolveu dizer para empolgar o escudeiro. E com a voz desafinada cantarolou:

A calúnia, primeiro, é um ventinho leve,
Uma brisa agradável que sutil e discretamente,
fraca e vagarosamente, começa a sussurrar.
Piano, piano, rastejando pelo chão,
À voz baixa, misteriosamente,
Pouco a pouco se acelera.
Ela infiltra-se habilmente
Nas orelhas das pessoas
Atormentando e inflando
Suas cabeças e seus cérebros.
Ao passar pela boca, ela emerge,
E o barulho vai crescendo,
E toma força aos poucos,
Até voar de um lugar para outro.
Então se assemelha a um trovão, uma tempestade,
Que da profundeza das florestas
Urra e assombra
Paralisando todo mundo com horror.
Finalmente, com terror e tremor
Espalha-se e propaga-se como uma explosão,
Semelhante ao estopim dum canhão,
Um terremoto, um raio
Que faz ecoar pelos ares;
E o infeliz caluniado,
Alijado e desonrado
Na opinião de meu público,
Vai totalmente quebrar.
Larará, larará, larará...

Que tal minha canção, filho? Chama-se La calunnia è un venticello
“Maravilhosa! Um poeta! Um artista!”
“Eu tenho também esse dom de mudar letras e fazer coisas belas, mesmo inventando palavras que não existem”
“Belas e verdadeiras, pois fazendo como na canção, todo mundo acredita!”
“Sim filho! Stultorum infinitus est numerus”, citou solenemente, “Que quer dizer: o número de tontos é infinito”.
“Sensacional! Vossa mercê é fenomenal! E quando coloca então aquela capa... do Zorro...”
“Aprenda de mim, filho, que sou manto e humilho os corações”.
“Agradeço a Deus todos os dias, por ter me colocado a seu lado”.
“Sim, agradeça”.
E continuaram a cavalgar.


Capítulo Terceiro

De como Don Furioso interpretou um torpedo no celular de seu escudeiro e como explicou da segurança de sua barquinha.

É sabido que a comédia e a sátira fazem muito bem às nações. Elas funcionam como espelhos, onde se vêem as ações humanas; em nenhum lugar há mais verossimilhança, porque elas representam vivamente como somos e como somos vistos. Jamais reis, imperadores ou pontífices são personagens de comédias. O protagonista deve ser sempre um rufião, um embusteiro, um mercador desonesto, um soldado medroso, um tolo apaixonado, um traído imaginário e tudo mais que Molière foi capaz de fazer.
Longe, porém, de reflexões sobre a comédia, prosseguiam pelas ruas o escudeiro e seu trágico mestre, até que vibrou o celular de Melança.
“Opa!”, exclamou, “é um torpedo!”
Ao ouvir isso, Don Furioso deu um tapão nas costas do escudeiro lançando-o na calçada e jogando-se ao chão junto com ele.
“Ali! Guerra! Torpedos! Guerra!”, bradou o Cavaleiro da Taturana Figura deitado no chão ao lado de seu escudeiro. “Os dois exércitos!”
“Exércitos?”
“Cala-te e observa filho. Os dois exércitos aproximam-se. De um lado, o chifrudo com sua legião. Belly boom, o Belzebu barrigudo! Circunferência roliça e pé de boi. Muito frango e farofa na pança! Do outro, o cavaleiro do bem, pouca telha e muita virtude! O mensageiro dos céus, a galinha que abre as asas para seus pintinhos”.
“Não é nada disso, santo amo! É apenas um pessoal saindo dum baile de fantasias!”
“Fecha a matraca, que não entendes nada de cavalaria andante! São os exércitos do apocalipse, pois se agora não é o tempo do Anti-cristo, é porque a Besta perdeu o calendário!”
“O torpedo foi no meu celular! Recebi uma mensagem!”
“Cala-te, que foi mais um encantamento do Fernandão. Os exércitos transformaram-se em foliões. Sabe filho, é muito fácil para esses encantadores fazer o que querem. Esse maligno persegue-me, porque teve inveja da glória que eu alcançaria nessa batalha, e mudou os exércitos em gozadores da vida. Prometo-te, pela minha alma, que verás ser tudo verdade o que te digo”.
“O torpedo”, disse levantando-se e erguendo seu mestre, “na verdade, foi no meu celular, com a notícia de que foi publicada uma nova encíclica!”
“Não queira, filho, com falsas alegrias, alegrar minhas verdadeiras tristezas”.
“Mas é verdade!”
“Qual o coração que não chora nesse mundo?”
“O senhor tem que ler logo, para que eu saiba o que pensar e o que dizer sobre essa encíclica. Enquanto não ouvir sua explicação não saberei em que coisa acreditar. É muito chato ler tudo isso! Ainda bem que tenho o senhor para mastigar tudo para mim! E então direi se é boa ou má, pois antes que eu aceite, o senhor precisa já ter aceito”.
“Veremos. E se necessário marcarei uma reunião extra!”
“Sua leitura dispensa minha leitura!”
“Isso filho! Isso! Sabes muito bem como se faz, e Deus o recompensará por isso! Filho, filhinho, é melhor ficar na minha barquinha, pois todos os barcos espalhados por ai, não passam de embarcações lideradas por Carontes”.
“Sim, em sua jangada estarei até o fim, porque Deus guiou-me a vossa mercê e com vossa senhoria eu estarei sempre em divina companhia. Ai que medo de ficar sem vossa mercê!”
E continuaram ainda mais um pouco.



Capítulo Quarto
De como o Cavaleiro da Taturana Figura revelou o segredo de sua capa para Albancho Melança.
Cavalgando lentamente pelos confins da Mooca, Albancho Melança resolveu pedir mais revelações para o Cavaleiro da Taturana Figura. Há muito tempo intrigava-lhe aquela capa que seu amo usava no inverno, e aquele beret, que seu amo julgava dar-lhe estilo, personalidade e singularidade, apesar desse artigo fazer parte do armário de qualquer simplório da população francesa.
“Amo amado. Tenho ainda uma questão para vossa mercê”.
“Pois diga filho, estou aqui para te servir, embora você deva me servir também”.
“Para mim sempre foi um mistério de onde vossa mercê tirou aquela capa que usa no inverno, mesmo que as temperaturas na Mooca nunca baixem de menos de 3 positivo, isso no inverno mais rigoroso. Alguns dizem que é a capa do Batman, mas eu não tenho vocação para Robin. Outros dizem que é a capa do Zorro, e por isso querem me associar ao Tonto”.
“De Tonto não tens nada, pois esses continuam pobres até o fim da vida”, interrompeu Don Furioso.
“Se não é a capa do Batman, nem do Zorro, de quem é?”
“A capa não pode ser do Batman, nem do Zorro, porque além de norte-americanos, eles não pertencem à cavalaria andante. A minha capa vem da Europa”.
“Don Juan! Já sei! É a capa de Don Juan!”
“Cala-te mentecapto! Que é claro que não pode ser de Don Juan! Olha bem para minha cara”. Albancho aproximou-se bem perto da Taturana Figura.
“Estou olhando”, retrucou.
“Pois bem. Há aqui algum Don Juan? Algum charme nessa cara?”, perguntou Don Furioso desafiando o escudeiro.
“É”, retrucou Albanho, “está um pouco enrugada. Talvez um botox...”
“Cala-te cretino insolente! Pensa que sou o Berlusconi? Minhas mãos são limpas; tão puras e humildes que santifico tudo que toco”.
“Perdão amo. Achei que aceitaria uma esticadinha aqui e ali. Mas se não é Don Juan, pelo menos, diga lá, a capa vem da Espanha”.
“Filho. Filho presta atenção. Vou te prevenir. Sou um homem do espírito e não da carne. A capa não vem da Espanha, pois não gosto das igrejas espanholas, mas confesso que você acertou ao dizer que ela vem da Europa”.
“Ah! Eu sabia! Vossa mercê foi buscá-la na Europa! Então a capa é do Sherlock Holmes! Elementar meu caro Don Furioso!”
“Fecha essa matraca, o cabeça chata, o cabra da peste! Eu odeio inglês, eu não sei enrolar a língua, nem por a língua no meio dos dentes para o tal th! Você não sabe nada”.
“Que raios de capa, então, é essa!”
“Vou te revelar um grande segredo”.
“Muito obrigado, meu amo. Eu não seria nada sem ti”.
“Essa capa eu trouxe da Transilvânia”.
“Meu Deus! É a capa do Drácula!”
“Isso filho, isso filho. Mas eu sou espiritual e não carnal, como expliquei”.
“O senhor é o Bento Carneiro? O vampiro brasileiro?”
“Repito, filho. Eu sou espiritual e não carnal. Eu sou vampiro, mas chupo o sangue das almas, não dos corpos. Eu domino as almas muito além de Bento Carneiro. Eu sou o vampiro dos jovens, o verdadeiro Chupa-cabra do Belenzinho, porque sugo o sangue do cabra até ele se inclinar diante de mim. Todo mundo sabe que atrás da cruz está o diabo! O meu domínio é absoluto e impregnado. Ninguém se livra de mim. E eu murmuro, maldigo e condeno as pessoas. As almas são minhas! Só um anjo pode dominá-las como eu faço! Legião! Eu sou o vampiro dos espíritos!”
“Cruz credo! Capa dos infernos!”
“Mas fique calmo não diga nada a ninguém”.
Albancho resolveu aceitar a missão. Esse segredo jamais seria revelado. Ele tiraria várias fotos de seu amo com aquela capa, e colocaria inclusive uma delas como salva-telas de seu laptop.


Capítulo Quinto
De como Don Furioso admitiu que estava cansado dos ingratos.




Andando pela Mooca, já próximo de casa, o Cavaleiro da Taturana Figura confessou para seu escudeiro que estava cansado.
“Estou cansado, filho. Cansado dos ingratos que colecionei na minha longa vida de cavaleiro andante. Acabei, pelo menos, com a boa fama de todos eles!”
“Mas eles eram amigos! Precisava maldizê-los assim?”
“Tudo é necessário para manter minha boa fama, meu bom domínio e minha boa imagem. E olha, filho, que eu não faço alarde de minhas boas obras, porque não quero que entre em meu coração a hipocrisia e a vangloria, inimigos que brandamente se apoderam do coração mais recatado. Agora estou velho. A velhice é a idade em que o homem deveria ser universalmente reconhecido pela sua honra, caridade, obediência e amplo ciclo de amizades. Mas eu não tenho nada disso. Quis deixar para a posteridade a fama de santidade, mas o filho das trevas me traiu. E entro para a história como o Chupa-cabra do Belenzinho”.
“Sou obrigado a concordar”.
“Cala-te, servo atrevido e ingrato”, retrucou furioso o Cavaleiro da Taturana Figura. “Julgue de tuas cavalarias e não te metas em julgar os temores e as valentias alheias”.
“Perdão meu amo, apenas achei…”
“Já te falei mil vezes que o que tu achas não vale nada”.
“Um desses ingratos resolveu por a boca no mundo!”.
“Que foi agora?”
“Antes de qualquer coisa, ele diz que tudo que ele disser será usado depois por Vossa mercê, a seu modo, contra ele”.
“Deixa o metido a sabichão! Ele vai se estropiar comigo!”
“Ele anda dizendo que ele foi expulso da cavalaria andante, mesmo não tendo cometido nenhum escândalo, apenas por ter se desentendido com Vossa mercê, em algo que nem era grave”.
“Filho, filho, entenda o que ele não entende: contrariar-me, não importa muito em que, é muito grave. Ele não entende nada”, e soltou uma gargalhada, acompanhada por Albancho. Riam de modo tão afetado que pareciam a dupla Beavis and But-head (sic).
“E diz que Vossa mercê quer controlar tudo, principalmente as amizades, contando, aumentado ou criando faltas dos outros para “prevenir” as pessoas a ficarem contra o dito cujo, e então ficar com a fama de Cavaleiro Zeloso da Taturana Figura. E, ainda, como se Vossa mercê fosse um grande sábio da gramática portuguesa – coisa que, admitamos, o senhor está longe de ser, com seu português colegial e sem estilo elevado, e sua insistência no pleonasmo “há muitos anos atrás” – fica ridicularizando o texto dos outros, caçando erros de concordância e uso indevido de pronomes, quando seu próprio texto tiraria nota baixa no ENEM, para nem falar da FUVEST, vestibular que o reprovou”.
“Ora, ora, o engenheiro que pensa ser poeta! Ele esquece que sou o Cyrano da Cavalaria andante”
“Acusa-o de abusar de sua autoridade conquistada com muita retórica e sadismo para meter-se na vida das pessoas, ditando desde o tipo de calça que devem vestir até com quem podem ou não podem dirigir a palavra. Isso para não falar nas brigas familiares que Vossa mercê causa”.
“Brigam por meu nome! Não é isso maravilhoso! E pensam que brigam por causa de Cristo, quando o real motivo de todas as desavenças é o meu nome! Bendito seja o que vem em nome de Don Furioso!”
“E ainda, que Vossa mercê faz julgamentos sem chamar o réu para se defender, no melhor estilo farisaico! Afirma que o senhor institui um tribunal iníquo e tendencioso; emite juízos temerários; falta com a caridade, por acusar pecados alheios a terceiros sem falar antes e tentar advertir e converter o “pecador”; emite laudos de psiquiatria sem permissão legal ou competência para tal; emite juízos sobre o estado de graça das pessoas, definindo quem peca e quem não peca. E conclui dizendo que, em teoria, todo mundo concorda em dizer que Don Furisoso não é inerrante. Na prática, porém, todos os cavaleiros andantes procedem como se fosse. Nesse momento, ele mesmo bateu no próprio peito!”
“Olha aí, o homem que é exemplo de justiça”, ironizou Don Furioso coçando a cabeça apenas com um dedo, esticando os outros no ar como as pernas de uma dançarina de balé. “Como ousa desafiar meu julgamento? Por isso que esse aí não tem lugar a meu lado. Ousa me contrariar! Um absurdo!”
“E ele conclama o Boi mudo da Sicilia para explicar que as murmurações de Vossa mercê são gravíssimas, pois segundo o pensamento aquinense, a murmuração é uma falta mais grave que a difamação”.
“Hah!”, exclamou bufando, “Agora esse aí virou teólogo!”
“E ainda o chamou de pequeno tirano! Adolfurioso! O senhor seria o Chaves e, eu, o Kico!”
“Pequeno tirano? Eu sou um monarca, um senhor feudal!”
E chegaram à casa de Don Furioso.

Capítulo sexto
Que trata do escândalo do Monsalão




Ao chegarem à porta da casa de Don Furioso, que na cabeça dele era castelo, pois havia mandando erguer uma torre, Albancho resolveu contar que haviam descoberto todo o esquema que eles armaram que ficou conhecido como o escândalo do Monsalão, pois o O havia se intrometido no lugar do E, para poder dar um ar mais francês, brincando com o pronome possessivo mon.
“Descobriram tudo”, iniciou Albancho, “nosso esquema do Monsalão”.
“Tudo? Tudo?”, indagou Don Furioso.
“Tudo, tudo, não, porque é impossível, mas muito”.
“Que foi que descobriram?”
“Descobriram que temos um monte de laranjas, e que eles recebem uma grana boa por mês para emprestar o nome nesse jogo cítrico. São muitas laranjas. Laranjas gordas, laranjas magras, laranjas barbudas, bigodudas e sem bigode ou com a barba por fazer. Laranjas que têm bafo e não escovam os dentes; laranjas inimigas do desodorante e violentamente anti-perfumes; laranjas masculinas e femininas, laranjas solteiras, casadas, com ou sem filhos. Descobriram que nosso esquema é uma grande feira, e que toda laranjada está comprometida conosco até o bagaço. Uns engolem o caroço e fecham a matraca; outros, com síndrome de suco, na primeira espremida fazem água”.
“Esses sucos covardes a gente manda para goela!”
“Ele descobriu que nossas laranjas correm risco de ir para a cadeia e que todas as nossas grandes obras foram financiadas pelo meu esquema com empresas e o recolhimento de arrecadação oriunda dos contribuintes”.
“Fale baixo uma coisa dessas!”
“Mas foi por uma boa causa! Tudo bem! É válido! Ficou bonito. Foi bem empregado o dinheiro do contribuinte”
“E o esquema com aquela empresa?”, perguntou Don Furioso.
“Pois é, descobriram que o tal funcionário contrata prestadores de serviço para depois cobrar pagamento por fora para mantê-lo e que usa as informações da empresa para ganhar “um por fora” de outras empresas”.
“Vamos desmentir tudo. Com minha autoridade, ninguém vai duvidar que tudo isso não passa de calunia. Vamos dizer que são todos invejosos e que na verdade eles queriam era entrar também no esquema do Monsalão. E no fim, esse Monsalão terá o mesmo fim do Mensalão, ou seja, vai acabar em reeleição! Don Furioso, o senhor feudal vitalício! Um brinde aos laranjas!”, e levantou a lança como se fosse brindar.
Resolveram entrar no castelo do Cavaleiro da Taturana Figura. Don Furioso não se importava com o ditado espanhol que diz que todas as riquezas que se ganham em tais empreitadas são a custo de se perder o descanso, o sono e a boa fama.

Capítulo Sétimo
Que trata do sonho de Don Furioso e de suas aventuras na gruta de Monfesinos




Em casa, Don Furioso avisou seu escudeiro que precisava deitar um pouco. Ele ficou na sala esperando um longo tempo. O Cavaleiro da Taturana Figura foi sozinho ao quarto e tirou a amadura para colocar seu pijama. Vestiu a calçola de algodão e abotoou a camisa vermelha do pijama e meteu sua toquinha com uma bola na ponta na cabeça. Se ao invés de bola fosse uma mão, ele ficaria parecido com o Didi, mas como Don Furioso não gostava de sua imagem associada à artista de circo, nem diretor de hospício, não poderia por a luva na cabeça. Fantasiado, foi se deitar.
Don Furioso estava tão imensamente cansado que logo dormiu. Algum tempo depois, virava-se e debatia-se na cama. Na verdade, o Cavaleiro da Taturana Figura estava sonhando. Sonhava que estava numa gruta quase trinta metros abaixo do solo. Ele caminhava sozinho pela gruta, até que avistou um Alcázar. Imaginou estar em Toledo. Depois viu que não era, pois alguém se aproximava e não parecia falar castelhano.
“Espero-te há tempos, valoroso Don Furioso de la Mooca”.
“Tu és?”
“Acalma-te. Sou Monfesinos, o mesmo que dá nome a este lugar. Entre na barca comigo, vamos viajar por esse lugar. Verás a força da cavalaria andante”.
E Don Furioso aceitou o passeio de Monfesinos. Depois de algum tempo navegando, Don Furioso começou a identificar pessoas que apareciam diante dele.
“Nossa olha aquele!”, exclamou Don Furioso, “Filho! Filhinho! Filhinha! Filha! Filho! Filho! Filhinho! Filinho! Filho! ..... Mas estão todos aqui! Meus filhos espirituais!......Ei! Onde eles estão indo?”
“Estão aproximando-se. Juntando-se perto daquelas chamas. Estão pegando partituras!”
“Olha o negrinho na frente! Que está fazendo com o diapasão?”
“Espere”
“Eles vão cantar! Cantar em Monfesinos!”
“Eles já cantaram em muitas grutas! No Brasil, em Portugal, na Itália! E agora estão em Monfesinos!”
“Que maravilha!”
“Agora vamos nos calar, eles vão cantar para ti!”
E então, reunidos, começaram a cantar para Don Furioso.




Aqui tem um bando de louco!
Louco por ti, Furioso!
Aqueles que acham que é pouco.
Eu vivo por ti, Furioso.
Eu canto até ficar rouco, eu canto pra te servir.
Vamos, vamos, meu Furioso.
Vamos, meu Furioso, não pára de brigar!

“Que maravilha! Sensacional!”, bradou Don Furioso eufórico. E eles continuaram...




Aqui tem um bando de louco!
Louco por ti, Furioso!
Aqueles que acham que é pouco.
Eu vivo por ti, Furioso.
Eu canto até ficar rouco, eu canto pra te servir.
Vamos, vamos, meu Furioso.
Vamos, meu Furioso, não pára de brigar!

E Don Furioso ficou tão emocionado que desabou em prantos.




Aqui tem um bando de louco!
Louco por ti, Furioso!
Aqueles que acham que é pouco.
Eu vivo por ti, Furioso.
Eu canto até ficar rouco, eu canto pra te servir.
Vamos, vamos, meu Furioso.
Vamos, meu Furioso, não pára de brigar!

Seguiram então na barquinha e ouviam o canto cada vez mais fraco. Distanciavam-se. Outra voz solitária, ao fundo, surpreendeu Don Furioso.
“Que é isso?”
“O Ninja”.
"A tartaruga?"
"Não, não é apenas o Japa.”
“Kon-nichiwa!”
“Que é isso?”
“Hidari. Migi. Hidari. Migi. Migi.Hidari. Ue. Shita.Ue. Shita”.
“Mas esse daí não fala coisa com coisa!”
“Na verdade ele é assim. Aprendeu bem contigo, Don Furioso".
“Tooku. Kyoukai”.
“Mas vamos seguir, Don Furioso, deixa o japa. Vou levar-te para o centro de depilação”, anunciou Monfesinos.
“Aparta-te de mim! Sou de minha donzela sem par, minha doce Ivocinéia de Doboso! Tu és escandaloso com essa tal depilação. Não sabes que depilação é coisa de mulher que não presta! Não há nada mais recatado que pêlos nas axilas e nada mais casto que pernas peludas!”
“Acalma-te. Não é nada disso. O centro de depilação é onde limpamos nosso complexo de lobisomen”.
“Complexo de lobisomen?”
“Sim. Esse complexo nos leva a crer que somos perseguidos pelos outros”.
“Não me venha com essa! Eu sei bem que o Fernandão é amigo do Merlin! Estás me enganando, traidor, traidor, traidor”, Don Furioso acordou transtornado, gritando furioso. Debatia-se. Então percebeu que se tratava de um sonho. Ouvindo a barulheira e gritaria, Albancho subiu correndo para o aposento de seu amo.

Capítulo Oitavo


De como Don Furioso imaginou profetizar sua morte.


O cavaleiro da Taturana Figura revelou ao escudeiro que estava apenas sonhando e que ele não precisava se preocupar.
Don Furioso permanecia deitado na cama. Ouvia-se dum rádio de algum vizinho da rua, que não se contenta em simplesmente escutar uma música, mas faz questão que todo mundo conheça seu gosto musical, a canção:
Um lencinho não dá para enxugar, o rio de lágrimas que eu tenho prá chorar...
Melança achou melhor fechar a janela e aproximar-se de seu mestre para escutá-lo profetizar de como seria seu fim. Se ouvissem Falstaff talvez eles compreendessem que aquela vida tinha sido uma grande farsa, com conseqüências terrivelmente trágicas para centenas de vidas. Tutto nel mondo è burla. L’uomo è nato burlone.
“Filho! Filhinho! Filho!”
“Sim meu senhor feudal!”
“Chegou a hora de te contar uma revelação que tive”.
“Uma profecia! Que glória e honra viver ao lado de um profeta, ou pelo menos, um homem de visão!”
“Filho! Escuta este velho cavaleiro! Escuta como esta Taturana Figura há de morre!”
“Não fale em morte! Vossa mercê viverá sempre em minha mente e em meu coração!”
“Filho! Eu sei como morrerei...Eu sempre falei para meus discípulos cavaleiros que seria morto com um tiro, dado por um deles. Ai que glória! Entrarei na primeira páginas do jornais! Até a radio Vaticana vai anunciar! E sempre fiz questão de repetir isso para eles, inúmeras vezes, para encorajá-los. Essa é minha tática: falo que um deles me matará... E puft! Um dia um acredita e faz!... E se der certo, ninguém vai mais duvidar que eu sou profeta, o fisgado”.
“Seria realmente novelesco!”
“Sim! Eu sou o rei do gado! A boiada segue-me para eu onde for!”
“Vossa mercê seria a nova Odete Roitman, que dentro de seus próprios princípios, julgava-se muito boa, muito bem intencionada e com todos os direitos do mundo de fazer o que bem lhe parecesse, no melhor estilo: os fins justificam os meios!”
“Bem que se vê que não leste Maquiavel! Mas deixa-me concluir: Eu provoquei meus discípulos cavaleiros para esse trágico fim porque, com isso, entrarei para a história como um mártir!”
“Sim amo! És um mártir!”
“Agora estou fraco, apenas esperando o dia do cumprimento de minha última profecia”.
E Don Furioso permaneceu esperando a morte.




Epílogo

Amável e amargo leitor, eis que te apresento finalmente o epílogo. Já é mais que hora de deixar Don Furioso para que descansemos definitivamente dele. Que a caridade e a justiça que estiveram bem longe da Taturana Figura encontrem a divina misericórdia. E que essa divina misericórdia seja ainda mais misericordiosa com todas as vidas e as famílias destruídas pela tirania furiosa e sua protestantizante moral doboziana, pois os sucessos de Don Furioso são de se celebrar com grande indignação e riso.
Não há dúvida que deva ser ainda mais louco que seu amo, aquele que persiste fiel a Don Furioso depois de tantas sandices e maldades. Mas lhe chegará também sua hora, pois também para ele, a Taturana Figura se desmascarará.
Pacato e descontrolado leitor, antes de sair para conquistar o mundo, é melhor dar três voltas dentro da própria casa. A verdade resiste a todas as provas; e ainda que se ponha silêncio às línguas, não se pode calar a voz das plumas, as quais, com mais liberdade e mais atrevimento que as línguas, dão a entender a quem o queira e está livre do constrangimento e da opressão exercidas pelos tiranos. A pena é a língua da alma.
E viva! E viva! Tutti gabbati! Irride l’un l’altro ogni mortal, ma ride bem chi ride la risata final.
E mais não digo. Opa! Esse dizer eu conheço! Ainda vão dizer que é plágio, pois certas línguas não se acalmam jamais. Mas chega, senão teremos que recomeçar. O poeta Melchor de Santa Cruz que nos ajude ao dizer: Y es tanto lo que habló, que aunque más no ha de hablar, nunca llegará el callar adonde el hablar llegó.

Fim da Segunda e última parte de O enganoso fisgado Don Furioso de la Mooca.

Postado por Gigante Caraculiambro






Anônimo disse...
Caro autor:

Ao homenzinho mirrado
Cuj´alma tanto fede
li seu texto dedicado
em internética sede

Fe ito de li nhas saborosas
Vai o texto burilando
Fiel retrato das indecorosas
Façanhas do tal...
Furioso


Anônimo disse...
Façanhas? Não! Peçonhas,
Vergonhas, mediocridades.
Artimanhas medonhas,
Embustes e imoralidades


Um comentário: